Soaroir 1/8/2006
GRITOS DO PARAISO
(Original: Calçadas da Rua Manoel da Nóbrega)
É possível que as primeiras calçadas, como as que conhecemos hoje, tenham surgido juntamente com o sistema de pavimentação criado nos idos de 1800, pelo engenheiro escocês Thomas Telford.
O fato é que todas têm abordagens diferentes e nem sempre concordam inteiramente quanto às suas valias. Apesar de haver muita resistência, a maioria ainda acredita que sua serventia é a de ser “sidewalk” um caminho pavimentado para pedestres e que se estende ao longo das ruas.
Reunidas no talude e cercadas de bastante verde ao redor, com recipientes para detritos intactos e jardins bem cuidados, estavam as calçadas da rua Manoel da Nóbrega e algumas ruas transversais que discutiam e decidiam suas intenções, reclamações e queixas. Aliás, as calçadas mais esfarrapadas, entre elas as que ficam entre a mais paulista das avenidas e a mais emporcalhada das alamedas, praguejavam e planejavam algum ato de protesto quando foram interrompidas pela Dr. Carlos Sampaio que pediu um pouco de ordem.
A Cel.Oscar Porto, como sempre esfregando continuamente as solas, pigarreou como para ser ouvida e, ainda tentando fazer desaparecer todo aquele fedor misto de urina e creolina logo sugeriu uma CPI. Nesse meio tempo chega a esbaforida Chris Tronbjerg que foi logo reclamando do monte de resto de assaltos, dos barulhos das trombadas e atropelamentos logo ali na Brigadeiro, lixo e tudo mais. As demais que já não a suportam muito por ser a rua mais recente da redondeza, a mais curta e que além de ter nome que não é de brasileira é exatamente dela que vem aquele horrível cheiro de gordura de pastel e peixe todo o sábado logo de manhã, deram uns muxoxos e voltaram ao assunto da CPI. Inicialmente decidiram por Caçambas e outras Porcarias Indesejáveis. Mas a Chris não se agüentou, interrompeu e deu a resposta que antes não lhe deram a chance. Com cara de coitada retrucou e até se gabou um pouco de ser a única que tinha carro da polícia no jornaleiro, antes das minas e dos manos chegarem. Isso sem contar que aquele pastel enche bucho de muita gente por ali, concluiu a Chris. A platéia ficou dividida, meio pensativa como que analisando aqueles fatos que tinham sido narrados. O tempo estava correndo, mas ruas e calçadas que se prezam não podem se dar ao desfrute de divagar. The show must go on. Convocaram a Santos que até aquele momento pouco dissera. Ela parecia tristonha e até meio encabulada já que não fazia parte daquele bloco, no entanto tomou fôlego e discorreu com brilhantismo sobre todos aqueles ônibus dos hotéis estacionados, caminhões circulando constantemente, buracos, restaurantes e tudo o mais que por ela já havia passado. Não estava nada animada, principalmente quando recordou os velhos tempos em que, com a sua parceira Paulista, via gente bonita e cheirosa no lugar dos cocôs de cachorro e lixos de hoje. Sentia-se realmente desprezada. Arrasada. Foi deixada um pouco de lado assim que a Brig. Luiz Antonio esticou o pescoço mas, como uma enxurrada, desabou.
Aquela reunião não incluía avenidas tampouco alamedas, mas sendo a maioria ali reunida calçadas ilustres que muito conviveram com célebres transeuntes, sabiam como tratar penetras.
A temática da reunião incluía desleixo, buracos, cocô de cachorro e a falta de regulamentação para recuo e estilo das calçadas. Primeiramente queriam entender a razão pela qual havia uma distinta discriminação e preconceito para com as calçadas da ladeira para cima. Estavam realmente intrigadas. Só para as calçadas da ladeira para baixo havia limpeza, cuidados e até um certo carinho dos canteiros e, conseqüentemente, pássaros. Lá existiam lixeiras, árvores que não cobriam as luminárias e quase nenhum adesivo nos postes. Tampouco cocô de cachorro se via por lá. Embora cada calçada fosse de padrão diverso, estavam todas bem conservadas, limpas, em boa forma. Exatamente o oposto das demais.
Realmente havia uma contestação de tendências entre as calçadas da ladeira para cima e as da ladeira para baixo. Era um quadro de emoções quase líricas e vivencial que foi quebrado somente quando a Teixeira da Silva elogiou os pavões que pupilam entre a noite que vai e o dia que chega, lá pelos lados da Mário Amaral, a qual igualmente a Tutóia, não compareceu a reunião.
As calçadas da Manoel da Nóbrega, entre Oscar Porto e Av. Paulista, com um certo ar de enfado, mencionaram com displicência e desilusão o peso insuportável dos prédios que ficam cada vez mais altos. Arrematando, relataram indignadas o que era suportar, sem qualquer controle, todas aquelas caçambas, estacionamentos Zona Azul e o desatino das cadeiras espalhadas por lá nas sextas-feiras. Nem esqueceram do brechó com a Al.Santos.
Lá pelas tantas, após se cotizarem para ajudar as calçadas da ladeira para cima, recriminando veementemente todas as cadeiras nas calçadas que juntamente com vasos de plantas e postes de telefone não deixavam espaço para o pedestre, todas as calçadas, inclusive as das ruas arrabalde, decidiram enviar um e-mail para: cachorros & calcadas.br solicitando apoio para a realização daquela CPI por quarteirão, a fim de promover a adequada preservação de suas existências e a não transformação do espaço em taperas. Termos que assinaram: Os Behavioristas da Rua Manoel da Nóbrega e até pediram deferimento, o que concluímos serem seus gritos de alarme dignos de credibilidade e consideração.
MARIA DE CAMPOS, SOAROIR
É possível que as primeiras calçadas, como as que conhecemos hoje, tenham surgido juntamente com o sistema de pavimentação criado nos idos de 1800, pelo engenheiro escocês Thomas Telford.
O fato é que todas têm abordagens diferentes e nem sempre concordam inteiramente quanto às suas valias. Apesar de haver muita resistência, a maioria ainda acredita que sua serventia é a de ser “sidewalk” um caminho pavimentado para pedestres e que se estende ao longo das ruas.
Reunidas no talude e cercadas de bastante verde ao redor, com recipientes para detritos intactos e jardins bem cuidados, estavam as calçadas da rua Manoel da Nóbrega e algumas ruas transversais que discutiam e decidiam suas intenções, reclamações e queixas. Aliás, as calçadas mais esfarrapadas, entre elas as que ficam entre a mais paulista das avenidas e a mais emporcalhada das alamedas, praguejavam e planejavam algum ato de protesto quando foram interrompidas pela Dr. Carlos Sampaio que pediu um pouco de ordem.
A Cel.Oscar Porto, como sempre esfregando continuamente as solas, pigarreou como para ser ouvida e, ainda tentando fazer desaparecer todo aquele fedor misto de urina e creolina logo sugeriu uma CPI. Nesse meio tempo chega a esbaforida Chris Tronbjerg que foi logo reclamando do monte de resto de assaltos, dos barulhos das trombadas e atropelamentos logo ali na Brigadeiro, lixo e tudo mais. As demais que já não a suportam muito por ser a rua mais recente da redondeza, a mais curta e que além de ter nome que não é de brasileira é exatamente dela que vem aquele horrível cheiro de gordura de pastel e peixe todo o sábado logo de manhã, deram uns muxoxos e voltaram ao assunto da CPI. Inicialmente decidiram por Caçambas e outras Porcarias Indesejáveis. Mas a Chris não se agüentou, interrompeu e deu a resposta que antes não lhe deram a chance. Com cara de coitada retrucou e até se gabou um pouco de ser a única que tinha carro da polícia no jornaleiro, antes das minas e dos manos chegarem. Isso sem contar que aquele pastel enche bucho de muita gente por ali, concluiu a Chris. A platéia ficou dividida, meio pensativa como que analisando aqueles fatos que tinham sido narrados. O tempo estava correndo, mas ruas e calçadas que se prezam não podem se dar ao desfrute de divagar. The show must go on. Convocaram a Santos que até aquele momento pouco dissera. Ela parecia tristonha e até meio encabulada já que não fazia parte daquele bloco, no entanto tomou fôlego e discorreu com brilhantismo sobre todos aqueles ônibus dos hotéis estacionados, caminhões circulando constantemente, buracos, restaurantes e tudo o mais que por ela já havia passado. Não estava nada animada, principalmente quando recordou os velhos tempos em que, com a sua parceira Paulista, via gente bonita e cheirosa no lugar dos cocôs de cachorro e lixos de hoje. Sentia-se realmente desprezada. Arrasada. Foi deixada um pouco de lado assim que a Brig. Luiz Antonio esticou o pescoço mas, como uma enxurrada, desabou.
Aquela reunião não incluía avenidas tampouco alamedas, mas sendo a maioria ali reunida calçadas ilustres que muito conviveram com célebres transeuntes, sabiam como tratar penetras.
A temática da reunião incluía desleixo, buracos, cocô de cachorro e a falta de regulamentação para recuo e estilo das calçadas. Primeiramente queriam entender a razão pela qual havia uma distinta discriminação e preconceito para com as calçadas da ladeira para cima. Estavam realmente intrigadas. Só para as calçadas da ladeira para baixo havia limpeza, cuidados e até um certo carinho dos canteiros e, conseqüentemente, pássaros. Lá existiam lixeiras, árvores que não cobriam as luminárias e quase nenhum adesivo nos postes. Tampouco cocô de cachorro se via por lá. Embora cada calçada fosse de padrão diverso, estavam todas bem conservadas, limpas, em boa forma. Exatamente o oposto das demais.
Realmente havia uma contestação de tendências entre as calçadas da ladeira para cima e as da ladeira para baixo. Era um quadro de emoções quase líricas e vivencial que foi quebrado somente quando a Teixeira da Silva elogiou os pavões que pupilam entre a noite que vai e o dia que chega, lá pelos lados da Mário Amaral, a qual igualmente a Tutóia, não compareceu a reunião.
As calçadas da Manoel da Nóbrega, entre Oscar Porto e Av. Paulista, com um certo ar de enfado, mencionaram com displicência e desilusão o peso insuportável dos prédios que ficam cada vez mais altos. Arrematando, relataram indignadas o que era suportar, sem qualquer controle, todas aquelas caçambas, estacionamentos Zona Azul e o desatino das cadeiras espalhadas por lá nas sextas-feiras. Nem esqueceram do brechó com a Al.Santos.
Lá pelas tantas, após se cotizarem para ajudar as calçadas da ladeira para cima, recriminando veementemente todas as cadeiras nas calçadas que juntamente com vasos de plantas e postes de telefone não deixavam espaço para o pedestre, todas as calçadas, inclusive as das ruas arrabalde, decidiram enviar um e-mail para: cachorros & calcadas.br solicitando apoio para a realização daquela CPI por quarteirão, a fim de promover a adequada preservação de suas existências e a não transformação do espaço em taperas. Termos que assinaram: Os Behavioristas da Rua Manoel da Nóbrega e até pediram deferimento, o que concluímos serem seus gritos de alarme dignos de credibilidade e consideração.
MARIA DE CAMPOS, SOAROIR
Soaroir
Enviado por Soaroir em 01/08/2006
Reeditado em 02/08/2006
Código do texto: T206862
Classificação de conteúdo: seguro
Reeditado em 02/08/2006
Código do texto: T206862
Classificação de conteúdo: seguro
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Comentários
11/09/2009 14:53 - CARLOS AFFONSO
As calçadas de ruas que você menciona são até privilegiadas; precisa ver as da periferia, que além de descuidadas são cegas, surdas e mudas e analfabetas. Mas, como te amo São Paulo. Gostei do seu estilo. Escreves não só para massagear o seu ego, o dos outros também pelo prazer da leitura.
22/07/2009 19:49 - GU Bortolozzo
Seus textos sobre essa nossa região me agitam... gosto muito disso... necessito conhecê-la urgentemente. Bjs. GU Bortolozzo
17/10/2006 03:39 - Carlos Alberto Roldán
Qué escritura madura, la tuya, Soarir. Es un gusto la lectura de textos como los tuyos. Mis felicitaciones desde Argentina. Carlos Alberto Roldán
28/08/2006 09:21 - Eduardo Martínez
Soaroir, gosto muito de histórias (crônicas, contos e romances). E você é uma grande escritora, garota! Abraço! Eduardo Martínez
03/08/2006 19:50 - Denise Severgnini
Boa noite, poeta!Sempre com muito prazer e alegria venho até tua página para ler teu texto.A visita é breve, mas é feita com muito cainho e respeito por ti.As dores da tendinite voltaram.Beijos, Denise
Sobre a autora